A força dos mortos é admirável. Afinal, são seres que já não estão mais entre nós, e agora você pode estar se perguntando que diacho de assunto é esse? Força?
Como alguém que some da sua vida, da sua existência, pode te proteger, te ajudar, te transmitir confiança? Pois é. Eu digo que podem.
Ontem fui surfar sozinha, algo que já se tornou corriqueiro, mas que por muitos anos não passou de um desejo.
Aliás ouvi dias desses, de uma conhecida que também surfa, algo que sempre soube, mas jamais verbalizei ou escutei de alguém: “quando a gente começa a entrar no mar sozinha é porque estamos em outro ‘nível’ de surfe”. É verdade.
Afeiçoada a namorados, primo, tio, amigos e até vizinhos, via nos homens uma muleta da confiança que me permitia entrar no mar menos receosa.
Vale dizer que há muito homem que não se sente seguro para enfrentar o mar sozinho (pausa: essa frase é do Filipe, que sempre dá uns pitacos nos meus textos).
Vivi relações que me mostraram a importância de ter boa companhia para evoluir no surfe, apesar de também ter vivido o oposto. “Deixa de ser ridícula e vai pra casa”, ouvi certa vez de um affair da adolescência. O mar estava difícil e, portanto, o momento era desafiador para mim e, talvez, até pouco aconselhável que estivesse na água aquele dia. Mas o fato é que há outras maneiras de desaconselhar alguém a surfar.
O episódio não serviu para que eu decidisse parar de gostar dele (se é possível isso) e me pergunto porque somos tão burras, às vezes, ao nutrirmos relacionamentos destrutivos ou no mínimo inúteis.
Ultimamente tenho surfado bastante sozinha. Não por opção, mas por necessidade. Nossos horários, meus e de Filipe, não coincidem muitas vezes. E como deixar de surfar por não ter companhia quando as condições estão boas, quando tem altas?
É importante frisar que não aconselho a prática, apesar de extremamente libertadora, surfar com alguém por perto é o ideal, mesmo que desconhecidos. Além de servirem como referência de posicionamento na água, ter outro surfista por perto pode ser uma questão de sobrevivência.
Não acredito que o mar seja traiçoeiro, apesar da máxima ter ficado registrada na minha mente, talvez desde o primeiro caldo que eu tenho gravado no meu HD interno.
Mas como todas as verdades absolutas, essa também precisou de tempo para ser desconstruida. Fator imprescindível para me dar confiança e, finalmente, segurança para enfrentá-lo sozinha.
Diria que o mar é exigente, requer lealdade, respeito e mais do que tudo, humildade. Não há nada mais digno do que assumir fraquezas e saber distinguir desafio de risco real. A humildade é uma excelente ferramenta para isso, tenho aprendido.
Voltando aos mortos, ontem entrei sozinha no mar e me senti um tanto ameaçada. As séries de ondas entravam com força e quebravam em uma bancada de areia relativamente rasa, tornando o ambiente extremamente energético e intenso. Por um segundo pensei em desistir, mas ignorei o pensamento e passei a imprimir o mesmo ritmo frenético aos meus braços e a minha respiração, exalando o ar de forma que eu estivesse me preparando para parir, tentando dar à luz, quem sabe, a minha confiança, perdida em algum lugar naquele instante.
Depois de enfrentar algumas ondas de mais de dois metros de face, finalmente cheguei ao Éden. Também chamamos de outside, mas dependendo das condições pode ser literalmente o paraíso. Lá as ondas já não quebravam mais, podia voltar a respirar normalmente e meus braços já não sentiam o peso do esforço.
Por um instante durante a batalha, entre mim e as ondas, veio Dick Dale à cabeça, e em uma espécie de delírio consciente tive certeza de que ele esteve de alguma forma comigo e me ajudou a enfrentar aquela zona de arrebentação.
por Janaína
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