Sobre uma certa miopia social que acomete parte de surfistas que acreditam aque as ondas artificiais estão ao alcance de todos.

Recentemente, o surfista, apresentador de TV e ex-competidor Marcelo “Trekinho” falou que “piscinas de ondas favorecem todo mundo. Você só tem que ir lá”. A frase, deslocada de qualquer contexto, já seria uma mentira. 

Piscinas as quais o surfista se referiu são privadas e de uso exclusivo dos moradores dos condomínios de luxo onde estão alocadas. Em algumas exceções convites podem ser feitos, desde que acompanhados de pagamento.

Se tem uma palavra que não cabe às piscinas de ondas no Brasil, é o termo “acessível”. 

Pois bem, a frase já seria de uma miopia ofuscante, mas piora diante do contexto no qual a fala foi inserida.

Imagem aérea do Oceano. Foto Unplash / Michael Olsen

O surfista estava reunido ao lado de outros para discutir o cenário do surf feminino no Brasil. Diante da ex-competidora, negra e ativista Érica Prado, Trekinho não sentiu qualquer constrangimento ao sugerir que as brasileiras poderiam sim surfar como as estrangeiras. Afinal, “a piscina de onda tá aí, ela favorece todo mundo, você só tem que ir lá”.

Recentemente, um caso parecido deixou a rede social em polvorosa. Durante uma transmissão ao vivo de um campeonato de surf, Ricardo “Bocão” sugeriu que o atleta José Franciso “Fininho” deveria se esforçar mais para competir determinada etapa, ao invés de desistir do evento.

Vale lembrar, que Fininho tem uma das histórias mais dramáticas e comoventes do surf no Brasil e arrisco dizer, do mundo. Francisco foi MORAR NA RUA AOS SETE ANOS de idade e o resto é história que deve ser contada com compromisso e não en passant.

As duas situações reproduzem o mito da meritocracia, amplamente defendido por uma classe social que jamais encarou qualquer dificuldade financeira ou emocional. Mesmo assim enchem o peito para dizer que “basta se esforçar, perseverar e o triunfo virá”. 

“As pessoas não raciocinam que a meritocracia tem que ser entendida como um instrumento de violência quando a gente responsabiliza um indivíduo pela omissão do Estado.”

Djamila Ribeiro

Quando um surfista não tem o mínimo e enfrenta falta de apoio financeiro e todo o pacote que exige com que essa pessoa evolua em performance (nutrição, preparação física adequada, acompanhamento terapêutico, estabilidade financeira e emocional), oportunidades são reduzidas. Por consequência, as chances de prosperar também.

Admiro a garra de homens e mulheres que ainda insistem em surfar profissionalmente no Brasil. São verdadeiros heróis da resistência. Gente como Julia Santos, Tita Tavares, Monik Santos, Fininho, e tantas e tantos outros.

Os que nunca viveram a pobreza e sustentam, sem perceber, a estrutura patrimonialista patriarcal liderada por brancos, devem saber que perpetuam para desigualdade social que, por sua vez, impacta diretamente na saúde, segurança e bem-estar da sociedade.

Mas, claro, tudo isso não passa de um enorme MIMIMI, vitimização…não é mesmo? Que mundo mais chato esse onde não se pode nem mais ser racista, misógino e homofóbico? É muita lacração!

A fala do surfista diante de uma mulher negra é de uma cegueira profunda, à medida que ele, após ser confrontado por ela, ainda insiste e elenca surfistas que teriam oportunidade de ir à piscina: “a Laura Raupp, a Belinha, a Sophia, a Tainá”. Não por acaso são todas brancas.

Portanto, além de total inconsciência de classe, o episódio escancara o racismo estrutural.


Ainda falta essa consciência de entender o racismo como um sistema de opressão que nega oportunidades, o racismo como estruturante de todas as relações sociais e não meramente algo individual.

Djamila Ribeiro 

Um sistema que oprime certa parcela da sociedade, a priva de viver em plenitude. 

É lamentável que alicerces do passado ainda reverberem com tamanha força, capazes de uma cegueira que faz perpetuar pensamentos e atitudes tão equivocas.

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