Recentemente surfei pela primeira vez com uma prancha oca de madeira. O dia estava ensolarado, era um sábado ou domingo, não recordo ao certo, as ondas quebravam por toda a praia de Itamambuca, estava pequeno, meio metro, mas com uma constância ótima, de modo que as séries apontavam no horizonte em um ritmo perfeito. O vento soprava moderado, tornando a superfície da água um pouco irregular. 

por Janaína Pedroso

Chegamos na praia e logo bateu a vontade de surfar. Há algum tempo, se visse tais condições, raramente me animaria para entrar na água. Hoje, após a maternidade, essas características que tornam as ondas perfeitas, o tal mar clássico, não determinam meu estado de ânimo. Resumindo, me empolgo com qualquer marola.

O estado de graça começou quando peguei a prancha oca nos braços. Peso, coloração, detalhes, marcas do que um dia teria sido uma tábua, uma árvore. Era como se de algum jeito a prancha ainda conservasse a alma daquele tronco. Sabia que eu precisava mudar meu pensamento, abrir o coração. Afinal, depois de mais de 20 anos surfando sobre um bloco de poliuretano, leve e pequeno, o que eu estava prestes a viver era algo completamente novo. Zerei expectativas, me despi de qualquer julgamento, o trato comigo mesma era dar risada de mim caso quedas e imprevistos acontecessem. 

Contudo, diferente de tudo que não esperei (o que no fundo é uma grande mentira, porque mesmo tendo consciência de não ter expectativas, a gente sempre tem alguma, mesmo que a expectativa seja não ter expectativa), enfim, vivi algo mágico, surpreendente, e o melhor: transformador. 

Foi mágico porque a experiência literalmente me transportou para o passado, quando criança saía para remar na prancha velha de wind surf, na represa de Avaré; ninguém falava de stand up paddle, mas já ensaiava meus movimentos. Na verdade, na época, a diversão era ver quanto tempo permanecíamos de pé, sem cair na água. No meio da brincadeira, também sobravam momentos para remadas. Foi o barulho de uma marola, batendo no fundo da prancha oca que me transportou, em uma fração de segundo, para as águas doces de Jurumirim, era o mesmo barulho que ouvia com a prancha de fibra. Então contemplei aquele horizonte, certa de que aquela queda já teria, por essa recordação, valido à pena.

Ademais, foi surpreendente porque deixei meu corpo fluir, sem nenhum anseio de querer programar uma manobra, antever uma possível leitura da onda. Eu estava diante do desconhecido, do novo, então deixaria que aquela prancha oca de madeira me guiasse. Aceitar a fluidez foi sem dúvida a forma mais inteligente de começar a reconhecer o peso, a flutuação, e demais características da prancha. O resultado foi um surfe fluido, onde corpo e prancha pareciam estar conectados.

Finalmente, foi transformador, pois consegui, após anos de surfe, sentir a mesma sensação de quando comecei a me aventurar na modalidade. Surfar com a prancha oca de madeira me fez experimentar sentimentos de pura alegria, euforia, excitação e liberdade.

Quando finalizamos um trabalho de arte, uma gravura, pintura ou desenho, e entregamos para o mundo, um ciclo de comunicação se estabelece. O trabalho se torna a ponte que leva uma carga de informações, mas principalmente de afetos. Isso tem um poder de transformação surpreendente. A arte tem esse poder de comunicar pelo sensível!

Giancarlo Ragonese, artísta plástico e surfista

Atestei que ela é de fato mágica. Não porque realizei a manobra perfeita ou atingi o pico da minha performance, mas porque vivi a essência do espírito do surfe. Aquela prancha mágica deu a mim uma espécie de domínio. Finalmente fez com que eu sentisse alguns poderes que todos nós somos capazes, mas que por diversas razões nos esquecemos. 

Janaína testou prancha TreeSurfBoards, confeccionada pelo artista plástico Giancarlo Ragonese. A surfista veste a.Mar.

Após fazer um bate e volta a São Paulo para gravação no Festival Path, a primeira sessão de surfe com uma prancha oca de madeira, da TreeSurfBoards, em Itamambuca, Ubatuba. Foto Jerry Meyer.