O ano de 2022 já é histórico para o surfe e especialmente para as mulheres surfistas. Após um período de incerteza e escassez de eventos, o tour mundial retornou de forma icônica. 

Em um dos templos do surfe, nas ondas de Pipeline e Backdoor, os entusiastas, praticantes e admiradores têm a oportunidade de ‘consumir’ o “creme do creme”. Com transmissões abertas e ampliadas, por assim dizer, o surfe esse ano, inicia de forma avassaladora. E confirma o fato de que somos o país do surfe.

Para o bem e para o mal, as ondas e os surfistas estão nos holofotes, podendo-se dizer que muito provavelmente surfamos a melhor onda de todos os tempos. Afinal, surfar nunca foi tão cool como antes, e o Brasil jamais teve uma participação como a de agora (deixemos o debate irônico sobre o cenário brasileiro de competição para outra hora).

Ademais, nem tudo são flores e apesar de inúmeros sentimentos positivos, há coisas que ainda incomodam. Contudo, o incômodo surge dos arredores e não do show propriamente, mas de comentários sobre um único fato: a presença das mulheres em Pipeline.

  • Elas estão evoluindo – essa frase incomoda demais, à medida que ela está permeada por equívocos e é sustentada por uma narrativa que, em primeiro lugar, foi criada e reproduzida até hoje por homens e mulheres machistas. Durante anos, as mulheres surfistas foram induzidas a acreditar que são menos capazes que os homens, consequentemente o inconsciente coletivo acaba por criar uma falsa realidade: a que de fato somos menos competentes, além de ter espaços e ofícios cerceados. Com essa errônea noção, as mulheres surfistas acabam por não testar seus limites, salvo as mais inconformadas. Finalmente, por favor, parem de usar essa frase, ou se usarem, tenham a delicadeza de narrar a história completa, inserindo quem não acompanha a modalidade com transparência. As mulheres estão correndo atrás do prejuízo causado por homens que, desde então, nunca aceitaram dividir as ondas com o sexo oposto. 
  • Lugares impróprios – não é só Pipeline que foi durante anos proibida para mulheres. Diversas ondas do mundo são surfadas por um crowd que hostiliza as surfistas e nega suas presenças. Pipeline é apenas um microcosmo, uma amostra que identifica a lógica reproduzida pelo sistema capitalista patriarcal machista, a qual mulheres devem ater-se a locais de menos destaque. Quando elas furam a bolha, normalmente exige-se dessa mulher que desenvolva características masculinas. Obrigando-a a camuflar sua feminilidade.
  • Mulheres e não meninas – entendo que para muitas e muitos referir-se à mulher surfista usando ‘menina’ pode ser fofo. Porém, há neste modo de identificação dois problemas em princípio. Primeiramente não condiz com a realidade, já que a maioria delas têm mais de 21 anos. Caso queira escandalizar-se, sugiro conhecer mais definições do nosso amado dicionário para ‘menina’. O segundo problema de identificar mulheres surfistas como ‘meninas’ está intrinsecamente relacionado ao primeiro, pois é de costume subestimar a capacidade dos mais jovens em nossa sociedade. 
  • Fator risco – em uma sociedade capitalista patriarcal a mulher que se arrisca é vista muitas vezes como louca, inconsequente ou masculina. É comum no surfe quando uma mulher se acidenta ouvir comentários do tipo:’ que louca’, ‘ela não está preparada’, ‘inconsequente’. Historicamente quem se arrisca são homens, desde as batalhas épicas até as guerras atuais. Enquanto homens degladiam-se por razões ora justificáveis, ora  duvidosas, as mulheres dedicam-se a cuidar do lar e da família. Nada de errado com isso, não fosse a imposição dos papéis e o pré- julgamento a quem se dispõe a revertê-los. Curiosamente, quando o homem se acidenta praticando o risco, ele é visto como corajoso, destemido e há em seguida uma noção de que aquele homem necessita de honras e atenção, enquanto a mulher apenas não deveria ter se arriscado tanto.

Finalmente, esperar uma performance igual hoje em Pipeline ou qualquer onda que seja, entre homens e mulheres surfistas é no mínimo desonesto, visto que até hoje fomos forçadas a duvidar de nossa própria capacidade e força, além de impedidas direta e indiretamente de desenvolver nossas habilidades físicas/esportivas.

Mas a boa notícia é que lentamente as coisas estão mudando. A surfista Moana Jones é um exemplo prático do que acontece quando uma sociedade permite que uma mulher seja ela mesma e faça o que deseja, de forma livre e sem julgamentos.

Avante mulheres do mar!

Johanne Defay da França durante Billabong Pro Pipeline no Hawaii. Foto de Brent Bielmann/World Surf League.